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12 março 2012

CASCUDO inaugurou temporada 2012




Caldeira de gestos

Extraído do livro “Teatro Caleidoscópio: o teatro por-fazer”, de André Amaro (Teatro Caleidoscópio, 2007)

A encenação de Cascudo, em 2002, inaugurou a sala de espetáculos do Teatro Caleidoscópio. Aqui, a vitalidade do “palco nu” e a essencialidade do gesto ganham força total. Pequenos cubos de madeira, dispostos simetricamente sobre o palco, poderiam sugerir uma cenografia mínima, mas, abstraídos de qualquer significação clara, tornam-se apenas a aparência volumétrica do vazio, diante da qual a presença e a narrativa corporal do ator acabam por ressaltar-se.
Em Cascudo, a improvisação é realizada sob a ótica da mímica, mas nutrida por referências gestuais brasileiras fornecidas pelo estudo de Luís da Câmara Cascudo, no livro “História dos Nossos Gestos – Uma pesquisa na mímica do Brasil”, de 1976. “Nossos porque, mesmo universais, os observara no Brasil”, observa o escritor, historiador, etnógrafo, antropologista cultural, crítico, sociólogo, orador, conferencista e poeta potiguar, autor de mais de 150 livros publicados sobre as matrizes do comportamento humano do homem brasileiro.
“Ele diz tintim por tintim a alma do Brasil em suas heranças mágicas, suas manifestações rituais, seu comportamento em face do mistério e da realidade comezinha. E sua vasta bibliografia de estudos folclóricos e históricos marca uma bela vida de trabalho inserido na preocupação de “viver” o Brasil” [1], comentou certa vez o amigo Carlos Drummond de Andrade.
A sugestiva caldeira da “gestualidade brasileira” apresentada por Cascudo - mão no queixo, andar requebrado, tirar o chapéu, usar o nariz, dedos em cruz, cabeça no coração, sobrolho, pé direito, entre muitos outros gestos dos mais de 300 exemplares por ele catalogados – ofereceu inspiração às improvisações iniciais. Não poderia faltar – até mesmo por remissão ao sobrenome do autor - o também chamado “cascudo”, conhecido golpe na cabeça com as articulações dos dedos.
O trabalho de exploração gestual avançou para o campo da dramaturgia em pouco tempo. Fomos buscar, em outras obras de Câmara Cascudo, material para a elaboração de um roteiro capaz de amalgamar os gestos numa teia de ações dramáticas. Queríamos uma história para contar. Não mais uma sucessão de cenas isoladas, como em A Festa de Baco; ou uma sucessão de cenas unidas por uma temática comum, como em O Sonho do Sátiro. Queríamos, agora, uma seqüência de fatos, linear ou não, que contasse, com gestos, palavras e um palco nu, uma história criada por nós mesmos.  
Os livros de contos, lendas e superstições, o Dicionário de Folclore Brasileiro, algumas passagens biográficas e frases célebres do famoso “folclorista” (termo que Cascudo abominava) convergiram simultaneamente para a nossa arena. Os contos Os Compadres Corcundas, O Peixinho Encantado, O Homem que pôs um Ovo!, Mata-Sete e As Irmãs Tata se misturaram às lendas da Iara e do Curupira para compor o roteiro. Criamos, após um longo período dedicado à improvisação, uma saga folclórica protagonizada por um menino sonhador e preguiçoso. Diariamente, ele acorda sob a ameaça de um “cascudo merecedor” e vai cumprir, a contragosto, as tarefas que lhe são incumbidas pela mãe. Ao sair de casa para colher lenha ou buscar água, tem a sua atenção desviada pelos chamados da floresta. É aí, em meio a tipos raros e seres fantásticos do rico imaginário popular brasileiro, que o menino se envolve em situações pra lá de embaraçosas, conduzindo o espectador a uma viagem – real e onírica ao mesmo tempo - pelo interior do país. 

Teatro antropológico?

Cascudo inaugurou a sala de espetáculos do Teatro Caleidoscópio, em 2002, sob olhar da crítica local. O jornalista Cláudio Ferreira, do Correio Braziliense, parece ter reconhecido a proposta caleidoscópica:

 “Num espetáculo de bolso, há que se fiar no talento dos atores. André Amaro reuniu um grupo com muita garra e expressividade. Só com figurinos criativos[2], poucos adereços e atores com pique invejável, a montagem consegue fazer o espectador mergulhar nos ‘‘causos’’. Para criar o clima, músicas recolhidas do folclore nacional fazem a abertura do espetáculo. Depois, é uma sucessão de quadros que mostram os tipos brasileiros e as lendas nacionais. Tudo muito ágil, quase sem intervalos entre as cenas” (25 de outubro de 2002).

No ano seguinte, durante o Festival de Curitiba, analisou o jornalista Beto Lanza, da Folha de São Paulo:

“Para a encenação, o diretor usa uma partitura desenvolvida pelos atores, pautada na dramaturgia corporal, seguindo os indicativos pinçados da obra de Cascudo. Não há elementos cenográficos, apenas alguns cubos vazados. O cenário é substituído pelo gestual dos atores, que ora definem o espaço, ora os objetos, o que resulta em um espetáculo minuciosamente coreografado, usando como suporte apenas a música executada ao vivo pelos atores. [...] Este é o diferencial desta peça em relação às contações de histórias que, geralmente, sustentam-se na palavra. Aqui a palavra é usada em pé de igualdade com os movimentos, ambos caminham lado a lado de forma complementar, criando um conjunto harmonioso de ações e textos. Esta é uma peça indicada aos amantes da cultura brasileira e aos pesquisadores interessados em apreciar uma experiência de teatro antropológico bem sucedida”. (28 de março de 2003)

O pretenso elogio foi, ao mesmo tempo, um convite à reflexão. “Teatro antropológico” – que não tem o mesmo viés conceitual de “antropologia teatral”, embora pertença à mesma zona investigativa – era, para mim, um termo distante de minhas experiências teatrais, ainda tão isoladas quanto inomináveis. O termo – trazido à baila por Eugenio Barba, mas também ligado a nomes de igual importância como Grotowski e Schechner - traduz o esforço criador e filosófico do teatro “cujo ator se dispõe a enfrentar sua própria identidade [...] no encontro com o “outro”, com o diferente, não para impor [seus] horizontes ou maneiras de olhar, mas para permitir uma abertura que [o] possibilite vislumbrar, além do universo conhecido, um novo território” [3].
Haveria, em Cascudo, fundamentos que justificassem o enunciado?  Por que razão concreta a montagem esteve associada ao teatro antropológico se nunca conseguimos promover intercâmbios com outros grupos? Se nunca nos expomos a uma confrontação que ampliasse nossa percepção sobre nós mesmos? Se o interculturalismo a que se propõe o teatro antropológico conotava certo sentido caleidoscópico (descoberta da unicidade através da multiplicidade), o jovem grupo do Teatro Caleidoscópio, por sua vez, carecia de vivência intercultural. Nesse sentido, não havíamos realizado nenhuma “experiência antropológica bem sucedida”, como gostaria de nos fazer acreditar Lanza. Mas, por trás da insinuação, percebi o enlace.
Patrice Pavis, em seu Dicionário de Teatro, define teatro antropológico como “uma tendência da encenação que se esforça em examinar o ser humano em suas relações com a natureza e a cultura” (1996, p. 374). A definição parece estabelecer um elo mais coerente com os propósitos do Teatro Caleidoscópio em Cascudo: pesquisar o comportamento do homem brasileiro, a partir das bases mitológicas de sua cultura.
Por outro lado, não é difícil reconhecer certa influência estética do teatro de Eugenio Barba. A utilização de objetos cênicos a serviço de uma sugestiva simbologia, por exemplo, é um recurso recorrente em alguns dos projetos do Teatro Caleidoscópio. Em Cascudo, os objetos são substituídos por instrumentos musicais que ora produzem música, ora tocam e ressoam como elementos de sonoplastia, ora servem a outros significados: um pandeiro transforma-se em tigela para bater bolo; um ganzá, em mamadeira; um chocalho, em telefone; um triângulo, em alça de sacola, e assim por diante.
Nos espetáculos do Odin, conta-nos Barba, o instrumento musical não serve apenas para tocar; é um acessório, uma parte do corpo do ator que participa, igualmente, da composição das ações cênicas: “fazer entrelaçar a acentuação da música com os acentos energéticos dos atores é exatamente o princípio sobre o qual se baseiam todas as formas do teatro oriental: os acentos sublinham, reforçam, ampliam os acentos das ações dos atores” [4]
Se a música, em Cascudo, é “teatralizada” pelos atores, tornando-se um elemento dramático e visual, em outras montagens ela fica a cargo de músicos ou sonoplastas que a executam - ao vivo ou não - de fora para dentro da cena. Seja como for, o universo sonoro é uma peça de grande interesse, tanto para a atuação quanto para a encenação. Ali, residem o batimento cardíaco, o ritmo e as mais variadas dinâmicas, tensões e intenções com que se pode construir uma vida cênica pulsante.


[1] CUNHA LIMA, D. Câmara Cascudo, um brasileiro feliz, p. 188.
[2] Os figurinos foram inspirados no peixe “cascudo”, que leva esse nome por possuir pele grossa, semelhante a uma casca. Para ganharem o efeito desejado (manchas e rigidez), as roupas foram pintadas com tinta automotiva. No acabamento, utilizou-se cola plástica branca para ressaltar o corte e a costura aparente das roupas rústicas usadas no interior.
[3] BARBA, EUGENIO, Além das Ilhas Flutuantes, pp. 189-190.
[4] Idem, p. 80      




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